Viva Paulinho Paiakan! Viva Bepkororoti!

 Viva Paulinho Paiakan! Viva Bepkororoti!
Foto: Murilo Santos/ ISA – divulgação1

Felipe Milanez2

Grande líder do povo kayapó morre por COVID-19 no Pará

Ontem o mundo indígena amanheceu de luto. Logo cedo começaram a chegar mensagens de áudio de choros, tristeza, vindas de diversas aldeias kayapó. Entre as 1209 pessoas que faleceram ontem no Brasil, das mais de 45 mil vítimas fatais da COVID19, a juventude indígena do Brasil perdeu um de seus maiores ídolos e referencias. Em todos os grupos de trocas de mensagens com jovens indígenas, mensagens de tristeza profunda eram compartilhadas por indígenas que vivem do Xingu ao Acre, do Nordeste ao Mato Grosso do Sul, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Na timeline do facebook, Instagram, twitter, de todas as mídias sociais, fotos e mais fotos com mensagens de tristeza e pesar vinda de jovens indígenas em luto, perdendo uma de suas referências, num momento devastador.

Dario Vitório Kopenawa, filho do grande xamã do povo Yanomami Davi Kopenawa, publicou no twitter: “Paulinho ajudou meu pai. Meu pai ajudou Paulinho. A luta indígena é feita de união.” O cineasta Kamikia Kisedjê, do povo Kisedjê, que vive no Xingu, fez um vídeo homenagem com algumas cenas de Paulinho Paiakan dançando e lutando no Acampamento Terra Livre, em Brasília. A Rádio Yandê publicou mensagens de pesar e luto.

O movimento indígena perdeu uma de suas principais referências e uma de suas vozes com ideias e estratégias mais sofisticadas. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica) publicaram um texto em homenagem, onde expressam a dor da perda de um companheiro de luta e uma referencia: “mais uma enciclopédia tradicional que se vai!”. Relatam diversas contribuições de Paiakan ao longo de sua vida para as lutas indígenas, incluindo os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, a eloquência como orador e estrategista, e que em suas viagens internacionais buscou parceiros e fez denuncias. Descrevem a sua generosidade, o saber tradicional, a paixão pela beleza da cultura kayapó, e o seu interesse pela modernidade — ele sempre andava com uma câmera e adorava tirar fotos.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) publicou homenagens, vídeos e falas de Paiakan, seguindo publicações e mensagens de todas as articulações e organizações indígenas regionais. Um vídeo emocionante da APIB registrado em um ATL, Paiakan dizia: “todos nós precisamos nos unir para termos forças para lutar. Sem nossa união, não vamos ter forças para lutar. A nossa única força é a união que precisamos. Só assim vamos ter condições de vencer qualquer governo. Sem união estamos entregando nossa luta, nossa força, nossa cultura, nossa vida, para os ruralistas, para o governo”.

A FEPIPA, Federação dos Povos Indígenas do Pará, que Paiakan ajudou a fundar e foi seu primeiro presidente, divulgou uma nota relembrando alguns dos grandes feitos guerreiros de Paiakan, como contra a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (quando se chamava Karara-ô) e na demarcação da Terra Indígena Kayapó, dizendo que muitos jovens hoje se espelham na sua trajetória de vida e de luta, e que perdem o principal chefe: “seus ensinamentos sobre a importância de lutarmos para a garantia dos nossos territórios e a preservação da nossa cultura, estarão para sempre em nossas memórias”.

Fundador também da Associação Floresta Protegida (AFP), que reúne dezenas de aldeias Kayapó no Pará, que prestou outra bela homenagem, “em nome de todos os funcionários e das comunidades associadas manifestamos nossa dor e os mais profundos sentimentos pela perda de nosso parente e companheiro de tantas lutas.” Contam que ele nasceu na aldeia Kubẽkrãkêj na década de 1950, filho do cacique Tchikirí, com quem fundou a aldeia A’Ukre. “Incansável na luta, dedicou sua vida para a proteção das florestas e para a garantia dos territórios e direitos dos Povos Indígenas.”

Entre os feitos, narrados nas diferentes mensagens a AFP lembra que foi um dos primeiros kayapó a aprender português e “um de seus mais dedicados diplomatas junto a seu tio Ropni, sendo reconhecido como um notório Mẽkabẽndjwỳj, mestre das palavras.” O enterro, a AFP comunicou, será realizado de acordo com os ritos funerais de seu povo, e com cuidado para evitar a infecção, na aldeia Ngômeiti. O’é, uma de suas filhas, participa da AFP, enquanto outra filha Maial Panhpunu trabalhou por anos na Secretaria Especial de Saúde Indígena e é uma brilhante pesquisadora em direitos humanos. Tania, sua terceira filha com a esposa Irekran, formou família e vinha ajudando seus pais em Redenção e na aldeia. Suas filhas seguem a luta que aprenderam com o pai e com a mãe. Numa rede social Maial postou: “ontem eu sonhei com você e você disse: ‘seja forte, não tenha medo’”.

Irekran é uma brilhante artista Kayapó, faz pinturas majestosas, desenha roupas, joias, faz artes em miçangas, e prima-irmã da grande líder tuirá, uma ativa mobilizadora das mulheres Kayapó.

Um grande pesquisador

A dor foi sentida profundamente também entre as principais instituições de pesquisas da Amazônia, na Universidade Federal do Pará, por pesquisadores e pesquisadoras do Museu Paraense Emílio Goeldi, entre redes de antropologia como a Associação Brasileira de Antropologia, e a SALSA, a Sociedade para Antropologia das Terras Baixas da América do Sul. Paiakan foi o inventor, junto de seu amigo Darrel Posey, da etnobiologia: ensinando a pensar a partir da interdisciplinaridade, como é o método Kayapó, a viver e preservar e construir a floresta Amazônica. É graças a Paiakan, portanto, que a Universidade de Oxford, no Reino Unido, uma das principais do mundo e onde Posey ensinou, conseguiu modernizar seus departamentos de pesquisas entre antropologia e biologia e desenvolver departamentos interdisciplinares para pesquisar a ecologia.

Por denunciar os interesses econômicos e as desigualdades das relações de poder nos planos de desenvolvimento da Amazônia, nos anos 1980, Paiakan também pode ser considerado um dos fundadores da ecologia política, e um dos promotores da descolonização do conhecimento — campos de pesquisa nos quais eu atuo.

Foi por mobilizar uma rede internacional de apoio contra a construção de usinas no Xingu que Paiakan foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, durante o governo Sarney. Paiakan inovou o movimento ambientalista, mudou a percepção elitista da ideia da conservação para mostrar como a vida dos povos indígenas era a vida da floresta. Foi companheiro de Chico Mendes e de Ailton Krenak na construção da Aliança dos Povos da Floresta. E revelou como os Kayapó não apenas defendiam a Amazônia e eram grandes conhecedores da biodiversidade, mas eram eles mesmo que plantavam a Amazônia, cotidianamente, pelo seu modo de vida. É reconhecido como um ícone por grandes organizações ambientalistas.

Até mesmo o capitalismo foi influenciado por Paiakan. A construção da parceria pioneira com a Body Shop foi uma forma inovadora de se tentar produzir a partir da floresta sem esgotar os recursos naturais, com respeito às populações tradicionais. Reformar o capitalismo tem sido um desafio para evitar o colapso ecológico que o planeta vive em razão da atividade humana — para todos aqueles que acreditam em boas práticas de empresas, devem a Paiakan a maior inspiração de que o capitalismo deve e poderia mudar para ser, de alguma forma, sustentável.

Relações com a Funai

Entre servidores da Funai na ativa e aposentados e entre sertanistas, o choque foi igualmente profundo. Paiakan sempre foi considerado um dos principais articuladores e intermediadores entre as políticas públicas para os povos indígenas e os povos indígenas, entre o mundo indígena e o indigenismo. Por décadas foi um dedicado funcionário da Funai, onde ensinou a Funai a compreender os povos indígenas, e ensinou os indígenas a compreender como poderiam se relacionar com o Estado. Conheceu a violência do Estado na ditadura com a construção da Rodovia Transamazônica, acompanhou o trabalho de sertanistas como Afonso Alves da Cruz, que estava no contato com o seu grupo kayapó, os Kubẽkrãkêj (ou Kubenkrankren). Foi com o pai de Paiakan que o grande sertanista Afonsinho aprendeu a falar kayapó, em um processo de contato com os povos kayapó no Pará liderado pelo sertanista Chico Meireles, entre os anos 1950 e 1960, em expedição que foi chefiada pelo sertanista Cícero Cavalcanti.

Afonsinho, como era conhecido, me relatou em um depoimento publicado no livro Memórias Sertanistas (Ed. Sesc, 2015):

“Os Kubenkrankren eram índios muito brabos. Recém tinham sido contatados quando eu cheguei. Eram brabos. Eles mataram muita gente no Xingu, eram índios violentos. A aldeia era grande, tinha mais de seiscentas pessoas. Kayapozão brabos, muito fortes, com rodelas de pau grandes no lábio, altos. Os seringueiros todos tinham medo deles. Quem mais massacrou seringueiros naquela região, de todos aqueles povos, devem ter sido os Kubenkrankren. Eram muito temidos. Eles também eram muito atacados. Teve um pessoal que participou do ataque que trabalhou no SPI (Serviço de Proteção aos Índios) também. Mas eles não falavam nada para os índios. Os índios também tinham arma de fogo. Porque eles matavam o seringueiro e levavam a arma do seringueiro. Então teve um funcionário do SPI que tinha sido baleado pelos Kubenkrankren. Ele tinha participado do massacre, do ataque que os seringueiros fizeram. Depois ele pediu as contas e foi embora. Não sei o ano, mas eles pegaram o caminho dos índios e foram atrás até a aldeia.”

O pai de Paiakan, o famoso benadjyry Tchikirí, não somente ensinou Afonsinho a falar kayapó, como foi fundamental para moldar seu caráter e engaja-lo na defesa dos povos indígenas. O que durou a vida inteira e, ele relatou, foi a partir da experiência entre os Kubẽkrãkêj. Afonsinho liderou o contato com os Xikrin do rio Bacajá, que estavam sendo atacados por garimpeiros, os Kayapó do Kararaô, atacados por seringueiros, e os Arara na Transamazônica, que estavam sendo atacados por grileiros e posseiros. Seu pai havia sido morto por indígenas do povo Assurini, em um seringal no Xingu, dez anos antes dele ir trabalhar com os Kayapó no SPI. E foi com os kayapó que compreendeu que os indígenas eram vítimas do processo colonial, que atacavam para se defender, e que sabiam reconhecer aliados não indígenas e com eles construir relações de amizades. Uma vez Afonsinho foi flechado em um ataque feito por indígenas do povo Arara, e mesmo armado, seguiu o celebre lema de Marechal Candido Rondon: morrer se preciso for, matar jamais. Ele falou fluentemente a língua kayapó até os últimos dias de sua vida, até falecer, em Altamira, em 2017.

A Funai deu apoio a Paiakan no período em que teve que viver um exílio dentro de seu território, sem liberdade para sair. E advogados da Funai conseguiram, em 2006, retomar a sua liberdade com a comutação da sua pena da acusação de lesão corporal, cumprida dentro do território.

Foi nessa época que conheci Paiakan. Eu era editor da revista da Funai, Brasil Indígena, e acompanhei uma grande mobilização com mais de 200 chefes kayapó que aconteceu na aldeia Piaraçu, um movimento organizado por Raoni e Megaron para discutir como enfrentar a construção da usina de Belo Monte. Paiakan estava lá. Carregava sempre um caderno onde anotava tudo, em kayapó. Era uma das principais vozes do encontro, em um debate intenso com grandes intelectuais kayapó.

Já se desenhava um cenário diferente daquele dos anos 1980, e Paiakan havia percebido como a estratégia perversa de desenvolvimento do governo Lula iria provocar divisões entre os povos indígenas para facilitar a instalação de usinas hidrelétricas e promover a mineração. Conseguiram construir uma resistência tenaz, e a usina só foi autorizada pela Funai, em 2011, durante o governo Dilma e pelo então presidente da Funai Márcio Meira, de forma autoritária e sem a consulta prévia que os indígenas teriam direito. Antes de assinar Belo Monte, a Funai realizou uma reforma administrativa demitindo Afonsinho, Paiakan e Megaron de seus quadros, também abrindo processos administrativos contra Megaron por perseguição a suas atividades políticas.

Paulinho Paiakan era uma pessoa brilhante, generosa, e foi um grande visionário de seu tempo. Seu nome de branco, “kuben”, homenageava um pássaro do cerrado, enquanto seu nome verdadeiro, Bepkaroroti, descende de uma nobre linhagem. Bep são nomes de chefes, que ganham em um ritual. E Bepkaroroti foi uma grande entidade que existiu no mundo kayapó, um nome sagrado que trazia também grandes responsabilidades ao chefe. Os Kayapó, como diz a autodenominação Mẽbêngôkre, vieram do céu, de outro planeta, habitar a Terra depois que um caçador encontrou um buraco de tatu e desceu por ele, sendo seguido por diversos outros. Bepkaroroti é um desses deuses que circulam por diferentes planetas — uma posição no mundo espiritual que Paiakan pode estar habitando agora.

Paiakan era um sábio e era um grande estrategista político e militar. Se sabia ser generoso, também sabia ser duro e intransigente em seus princípios. Condenava absolutamente a prática ilegal de garimpo e de extração madeireira, a qual alguns chefes kayapó resolveram aderir. Isso lhe custou caro, e por seus princípios de defesa da ecologia e do território rompeu o diálogo com aldeias como Gorotire e Turedjam — inclusive com seu antigo parceiro de lutas, o chefe Kube-í, que passou a apoiar garimpo e apoiar, inclusive, Bolsonaro nas últimas eleições. Perguntei a ele em março se sabia se estas aldeias haviam fechado os garimpos para evitar a chegada do novo coronavírus, pois eu havia sido informado por algumas lideranças de Turedjam. Paiakan me respondeu que não tinha nenhuma informação: “não tenho contato com essas duas aldeias portque eles sabem que eu sou contra garimpo na terra kayapó”.

Infecção pela COVID-19 dentro da TI Kayapó

É possível que Paiakan tenha sido vítima justamente do que lutava contra. Já há circulação do novo coronavírus no território kayapó, atingindo a cada dia novas aldeias. Como amigo pessoal, vim conversando com Paiakan desde o início de março, preocupado com o risco de ser infectado, e ele era plenamente consciente do risco e buscou meios de evitar o contagio. Teve apoio de suas filhas, Maial, O’é e Kokanã, e sua esposa Irekran, para procurar isolamento. No final de março me escreveu dizendo: “estamos bem e isolado aqui em casa. Obrigado por sua preocupação com a saúde da minha família, você é amigo de verdade”. Ele queria ir para a aldeia, mas estava buscando recursos, ou seja, mais de 350 litros de gasolina para o barco, além de transporte até um pequeno porto.

Conseguiu, finalmente, ir para a aldeia com apoio da Funai em Tucumã. Protegido na floresta que amava, ele um dia foi fazer uma visita a outras aldeias, como Moikarakô, onde tem parentes. É possível que tenha sido infectado lá.

Ocorre que já há circulação do coronavírus dentro do território kayapó, e isso significa uma tragédia humanitária, agravada pela omissão criminosa e genocida do governo Bolsonaro em prestar assistência. Uma das possibilidades da qual o novo coronavírus chegou até o território Kayapó foi através da invasão de garimpeiros, e a negociação entre garimpeiros com alguns indígenas que participam da prática ilegal. Posteriormente, a realização de missas e festas nas igrejas evangélicas das aldeias, que até agora continuam com suas atividades diárias, contribuíram para a disseminação entre a população e a circulação no território. Paiakan lutou contra os garimpos e contra o etnocídio das igrejas — o que revela que a grandeza de sua luta poderia ter protegido os kayapó da pandemia.

Há também a suspeita de a infecção ter sido trazida para as aldeias Moikarako e A’Ukre por servidores da Sesai, que tem entrado no território indígena sem realizarem a quarentena fora da cidade, em algum lugar isolado. Isso decorre de mais um ato omissivo que está contribuindo para o genocídio indígena pelo governo federal, que ainda não implantou os planos de contingência para proteger os territórios indígenas, ou apenas parcialmente. Indígenas da aldeia Moikarakô me relataram que o agente de saúde que estava no Moikarakô testou positivo quando saiu da aldeia, e ele pode ter sido o vetor involuntário da disseminação — os agentes de saúde estão sendo vítimas das ações contraditórias e omissas de Bolsonaro. Não é exagero retórico, como venho escrevendo nas últimas colunas, apontar o genocídio através do novo coronavírus como uma arma de guerra biológica.

O governo federal não tem dado as condições mínimas de trabalho aos agentes de saúde, e o coordenador da Secretaria Especial de Saúde Indígena, passou a última semana mais preocupado em disseminar fakenews contra o PL 1142, que foi aprovado no Senado nessa semana e prevê ações emergenciais de apoio a populações indígenas e quilombolas. Nos vídeos e mensagens que fez circular, parecia mais preocupado em economizar dinheiro para o governo federal tocar a politica de extermínio do que ajudar a salvar vidas indígenas. Depois, a caminho do Vale do Javari, onde indígenas do povo Kanamari acusam a Sesai de infectar diversas aldeias, ele fez um vídeo lamentando a morte de Paiakan. Além de tentar de todas as formas impedir a aprovação de um projeto de lei que prevê medidas emergenciais, o governo ainda colocou um artigo que serve como uma bomba: a autorização de missões religiosas fundamentalistas permanecerem em territórios ocupados por povos indígenas isolados.

O racismo anti-indígena da imprensa paulista

e é hoje homenageado em tantos círculos no Brasil e mundo afora, há um grupo específico no Brasil que não aceita o brilho de Paiakan: a imprensa, sobretudo paulista. Paiakan foi vítima de um dos maiores crimes políticos da história da imprensa brasileira, de um julgamento político sem defesa e do sensacionalismo. É conhecida a famosa capa da revista Veja, estampando uma foto dele, com trajes tradicionais, escrita SELVAGEM. A acusação de estupro e da prática de canibalismo foi publicada em uma semana chave das negociações da Eco-92 no Rio de Janeiro, e da forma como foi feita visou não somente atacar o líder indígena, mas todo o movimento ambientalista mundial. E favorecer, como historicamente a revista Veja favoreceu, a elite agrária do país.

Esse caso da campanha midiática contra os direitos indígenas foi profundamente investigado no livro “A construção de um réu – Payakã e os índios na imprensa brasileira”, de Maria José Alfaro Freire, baseado em uma pesquisa doutoral que reuniu 217 matérias sobre Payakan, incluindo reportagens, artigos, editoriais, entrevistas, cartas, charges e notas publicados pelos jornais O GloboJornal do BrasilFolha de S. PauloO Estado de S. Paulo  e pelas revistas Veja e Istoé, no período de junho a dezembro de 1992. De maneira geral, esta cobertura ampla da mídia visava criar consensos sobre a imagem negativa de Payakã, acionando estereótipos de violência, selvageria e canibalismo, e se caracterizaram por promover uma postura anti-indígena e a espetacularização do crime. Nesse sentido, enquanto se sensacionalizou um caso de violência, expondo a vítima do caso a diversas formas de constrangimento, as vozes do discurso de defesa eram “acionadas de maneira a serem deslegitimadas, através da ironia, porque estão em permanente confronto com as supostas evidências desenvolvidas na parte noticiosa” (página 232).

Segundo a autora, “a partir da versão instaurada na revista Veja, assim como no conjunto de suas linhas argumentativas, retomadas e desenvolvida pelos jornais de grande circulação nacional, observamos o acionamento de estereótipos historicamente operantes sobre as populações indígenas, como selvagem, para dar cor e sensacionalismo à narrativa do crime imputado a Payakã, tratado com parcialidade pela revista (página 223).

Como descreve o historiador José Bessa, no site Taquiprati a respeito das “duas mortes de Paulinho Payakã”, “a estratégia consistiu em elaborar uma narrativa ‘noir’, que das páginas policiais se deslocou às páginas editoriais, onde as discussões geram questionamentos sobre a legitimidade e a legalidade de privilégios que reconhecem a posse de territórios pelos povos originários.”

Paiakan e sua esposa Irekran foram julgados juntos e absolvidos no julgamento de primeira instância, realizado em Redenção (PA), em 1994, da acusação de lesão corporal e de estupro. Porém, Paiakan foi condenado por estupro, quatro anos depois, pelo Tribunal de Justiça do Pará, a seis anos de prisão. Paiakan cumpriu a pena dentro da aldeia e Irekran foi considerada inimputável, após um longo debate sobre a condição dos indígenas na sociedade brasileira. Sobre o episódio, Paiakan falou para meu colega da época da Funai, Michel Blanco, em uma entrevista publicada na edição número 4 na revista Brasil Indígena, em 2006: “Eu entendi que não era acusação de estupro, e sim uma acusação política de um crime que eu realmente não cometi. Com o tempo, eu comecei a entender direitinho como o homem branco monta o esquema para prejudicar os outros.” Segundo Paiakan, o caso “teve repercussão para me desmoralizar e para desmoralizar a população indígena do Brasil. E fazer com que eu ou outro índio não lutasse pelos nossos direitos.” Como editores da revista, costumávamos publicar sempre uma entrevista de abertura da revista, a exemplo do que a Veja faz com as “páginas amarelas”, mas no caso, as vozes eram sempre destacadas lideranças indígenas em um movimento que entendíamos ser antirracista.

Como mostram as milhares de mensagens da juventude indígena nas mídias sociais, a Veja e a imprensa paulista não conseguiram destruir a imagem de Paiakan entre os povos indígenas. Mas conseguiu, de forma eficaz, aumentar o muro do racismo e do colonialismo no país, aumentar o fosso de seu ostracismo e obscurantismo, e isolar uma mente indígena brilhante e que sempre defendeu a possibilidade de um convívio respeitoso entre culturas no Brasil, do acesso de milhares de pessoas não indígena. Difamar Paiakan provocou sofrimento a sua família e ao movimento indígena, mas impediu, de forma também impactante, o Brasil de ser um país mais justo e sábio.

A grosseria e o desrespeito do jornalismo brasileiro contra os povos indígenas, sobretudo a grande imprensa paulista que é historicamente subserviente aos interesses da elite agrária, foi repetida ao longo dos anos pela Veja, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Em 1995, o atual diretor de redação da Folha, Sérgio D’Avila, publicou uma nota sobre Paiakan com o título: “o declínio do capitalista selvagem”. Apesar de Paiakan ter aceitado recebe-lo em sua aldeia após uma longa negociação, isso não impediu que o conteúdo da matéria tivesse cunho preconceituoso e difamatório, acusando de forma vil o líder ambientalista de ter um suposto “império de mogno e ouro”. No obituário publicado no dia da sua morte, a quarta-feira 17 de junho, a Folha de S. Paulo acusou Paiakan de ter caído no “ostracismo” depois da falsa acusação de estupro — além de citar histórias fantasiosas escrita por um novelista espanhol para tentar reportar a dimensão de Paulinho Paiakan, dimensão esta que muitos jornalistas da imprensa paulista e em geral, infelizmente, ainda desconhecem.

A revista Veja, nos anos posteriores, publicou inúmeras reportagens produzidas com racismo contra os povos indígenas — chegou a ser interpelada seguidamente pelo movimento indígena e pelo Ministério Público Federal. Foi assim uma matéria com chamada na capa, em maio de 2010, com o título de “A Farra da Antropologia Oportunista”, onde difamava diversas lideranças indígenas como cacique Babau, dos Tupinambá, e Dada, dos Borari. Nesse caso, eu já conhecia em detalhe como a Veja havia operado contra Paiakan, que já era meu amigo e eu já estava engajado no reconhecimento dessa injustiça histórica, e critiquei em minha conta pessoal do twitter o racismo da matéria da Veja — que reagiu exigindo da National Geographic Brasil, aonde eu trabalhava como editor, a minha demissão.

A luta do futuro se inspira no passado

Muito do sofrimento que o país vive hoje sobre o governo de ideologia fascista de Bolsonaro é de responsabilidade da mesma imprensa racista que difamou Paulinho Paiakan. Os brancos no Brasil teimam em achar que o que acontece com os índios e os negros não irá atingi-los, como se pudessem passar livremente dos efeitos terríveis que o racismo produz na sociedade. O Brasil ganhou o governo fascista que hoje é responsável por desprezar a gravidade de uma pandemia que já matou quase 50 mil pessoas por não reconhecer a luta de indígenas e negros por um país mais justo. Entre eles, o grande Bepkaroroti. Suas palavras em defesa da ecologia já não são sem tempo de serem ouvidas e politicamente defendidas, pois o futuro será sombrio para toda a humanidade em um Planeta em emergência climática.

O Brasil perdeu um de seus maiores heróis da sua trágica história de um país colonial e racista, cujos heróis populares não estão emoldurados na parede nem em estatuas em praças. A história de Paiakan remete à historia de grandes lideres indígenas históricos como Cunhambebe, Sepé Tiaraju, Ajuricaba, e da “história que a história não conta”, como cantou a Mangueira no célebre samba de 2019, aquele que diz que “desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”.

É no panteão da memória dos grandes lideres indígenas que lutaram contra a colonização, contra o racismo, em defesa da liberdade e da fraternidade entre povos, em defesa da natureza, daqueles que imaginaram coabitar e conviver em suas diferenças em um belo território, com uma ecologia singular, que está Paiakan. Ele viverá para sempre nas memórias das futuras gerações, se este vier a ser um pais mais justo, indígenas e não-indígenas.


1- En la fotografía, del gran encuentro en Altamira, 1989, contra la construcción de la Usina Kararao (Atual Belo Monte): Raoni Metuktire, Marcos Terena, Paulinho Paiakan (hablando en el micrófono), Ailton Krenak, Tutu Pombo e Benedita da Silva.

2- Doutor em sociologia pelo Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra, e mestre em ciência política pela Université de Toulouse.


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