O Brasil, o governo Bolsonaro e os desafios da COVID-19
Conjuntura e cenários de uma dupla crise
Ivandilson Miranda Silva[1]
A conjuntura brasileira atual tem sido marcada por duas crises que podem comprometer a vida do povo, sobretudo a parcela da população mais pobre, que precisa da ação urgente e eficaz do Estado em épocas de ameaças reais à vida. As duas crises das quais falamos são: a pandemia da COVID-19 que se amplia de forma muito rápida no mundo e em nossa sociedade, e deve ultrapassar as cem mil mortes no mês de abril (um dado trágico que mostra a letalidade desse vírus); a outra crise é a produzida pelo governo Bolsonaro, que tem assumido postura negacionista em relação à pandemia, ao questionar protocolos internacionais da Organização Mundial de Saúde (OMS), abrindo um questionamento interno e externo sobre a continuidade do seu governo.
O Brasil ferve em dúvidas e medo, pelos que estão buscando se prevenir da COVID-19; e ferve, também, em indiferença e arrogância, pelos seguidores do presidente que não admitem o isolamento social e colocam os interesses econômicos acima da vida. Esse debate, que não deveria estar acontecendo em meio à pandemia, tem tomado parte do noticiário e das análises dos cientistas políticos no Brasil e no mundo. O clima de instabilidade política é muito grande, pois o Governo Federal, que deveria estar liderando uma frente com governadores, prefeitos, parlamentares, líderes políticos, religiosos e artísticos, com o judiciário e os organismos locais e internacionais de saúde, para combater o avanço da COVID-19 – negligencia seu papel e reestabelece uma espécie de “guerra de torcida” que foi o tom da disputa eleitoral de 2018. Bolsonaro põe em risco a nação brasileira em detrimento dos seus interesses políticos-pessoais e transforma o combate à pandemia num embate mesquinho e irresponsável de narrativas, com sérias consequências internas e externas, inclusive dentro do próprio governo, como veremos a seguir.
Mais Estado e menos neoliberalismo: Dilema que desconcerta o bolsonarismo
O governo Bolsonaro, que sempre se posicionou dentro de uma perspectiva neoliberal, ou melhor: ultraneoliberal, de negar as políticas sociais e propor, cada vez mais, as privatizações para retirar o protagonismo do Estado como ator político importante, diante da crise pandêmica que assolou o mundo e o Brasil, se vê pressionado para promover políticas sociais robustas e urgentes de apoio à população, pequenos comerciantes, ambulantes (trabalhadores informais), desempregados, trabalhadores que tiveram salários reduzidos, usuários de programas sociais, e os pobres, público que esse governo não estava atendendo de forma satisfatória desde o seu início. Bolsonaro se viu na condição de acionar o “Estado Providência”, ou melhor dizendo: uma versão emergencial do Estado de Bem-Estar-Social. Essa conduta, que todo governo responsável deve ter em tempos de crise, tem deixado o presidente Bolsonaro pouco à vontade. Isto foi demonstrado quando da aprovação do auxílio de R$ 600,00 para os trabalhadores (a proposta inicial do governo era de R$200,00), pelo Congresso Nacional, que o presidente demorou dias para sancionar, e cuja apresentação do cronograma de pagamento os Ministérios da Cidadania e da Economia atrasaram. Esse gesto comprova o quanto Bolsonaro resiste à ideia de estender a mão ao povo. Em contrapartida a essa prática, o Ministério da Economia de Paulo Guedes, acena para o sistema financeiro com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 10/2020)[2], que defende a intervenção direta do Banco Central no mercado privado, de modo a atender às reivindicações dos Bancos, pois o Estado passa a assumir os prejuízos dessas instituições. Esse é o primeiro conflito do governo Bolsonaro: atender ao povo com as políticas sociais ou saciar a sede de lucro do sistema financeiro? Essas tensões estão na ordem do dia.
O negacionismo anticientífico, os “panelaços” e as pesquisas de popularidade
A postura negacionista do governo em relação à pandemia, tem gerado uma onda de panelaços no país. A cada pronunciamento do presidente, a sociedade ou parte dela, reage contra as declarações, desprovidas de fundamentação científica, contra o isolamento social. O presidente defende a tese de retorno imediato ao trabalho e fim da quarentena, buscando emplacar um dilema: “Salvar vidas X Salvar empregos”. Este dilema é falso e desonesto, pois a obrigação de qualquer governo comprometido com os valores humanos é, em primeiro lugar, com a vida; se o governo não protege vidas, obviamente não teremos força de trabalho, pois não se emprega cadáveres.
Mas, o presidente tem uma rede forte de apoiadores e uma estrutura de robôs que fabricam notícias favoráveis para o seu governo no chamado “gabinete do ódio”[3], comandado pelo seu filho Carlos Bolsonaro e pelo filósofo-“guru” Olavo de Carvalho, que faz a disputa de narrativa e tenta impor a posição do presidente. Essa postura negacionista, de chamar a COVID-19 de “gripezinha”, de dizer que a imprensa criou um quadro de “histeria”, e não apresentar nenhum tipo de preocupação com a vida no seu discurso, chamou a atenção de vários governos no mundo, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da imprensa internacional, que classificou Bolsonaro como o “último negador do Coronavírus” ou “Bolso-Nero”[4], numa alusão ao Imperador (37- 68 d.C.) que incendiou Roma e teve seu governo marcado pela arrogância e extravagância.
Obedecendo a essa orientação do presidente, seus seguidores chegaram a promover carreatas em diversas regiões do país contra o isolamento social – as assim chamadas “carreatas da morte” –, fazendo recrudescer os “panelaços” que clamam pelo afastamento do presidente, com a palavra de ordem: “Fora Bolsonaro!”.
Em meio a essa disputa de opiniões, houve uma queda significativa de popularidade do presidente[5], mas, por outro lado, numa outra pesquisa sobre a possiblidade de renúncia[6] de Bolsonaro, 59% dos entrevistados se posicionaram contra. As pesquisas revelam as contradições de uma sociedade que ora bate panelas contra o presidente, ora nega sua renúncia.
A militarização do governo e o golpe dentro do golpe
O terceiro elemento interno dessa crise é um dos mais densos, do ponto de vista da gestão do Estado, ou de quem de fato preside o país hoje. Desde o início do mês de abril, muitos organismos de imprensa, blogs, canais de Youtubers, estão difundindo a notícia de que Bolsonaro não governa mais o Brasil, ele seria uma espécie de espantalho político, uma “Rainha da Inglaterra” que “reina mais não manda”, e teria cedido o poder aos militares que, através do general Walter Braga Neto[7], estariam exercendo a “presidência operacional” do país.
De acordo com Fonseca (2020)[8], o assunto no Brasil ainda não tem tido espaço na grande imprensa, mas jornais da Argentina e da Itália noticiaram que Bolsonaro não governa mais, inclusive a manutenção no cargo do Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, seria uma decisão do General Braga Netto. O sociólogo brasileiro Emir Sader (2020)[9], em texto enviado para o jornal argentino Página 12, afirma que, para evitar a operação traumática de substituir o presidente por seu vice Hamilton Mourão, o governo está cada vez mais influenciado pelos militares, que exercem seu poder de veto das ações do governo e se tornam o único núcleo capaz de dar um certo grau de ação a um governo perdido pelas ações desestabilizadoras de Bolsonaro.
Enfim, esse clima de controle do executivo por parte da ala militar tem sido ventilado na imprensa e, se a notícia for verdadeira, aponta para a tomada de poder e a concretização de um golpe dentro do próprio golpe, tendo em vista que Bolsonaro foi eleito devido a uma manobra jurídica do então juiz (e atual Ministro da Justiça) Sérgio Moro, e com apoio da máquina milionária das Fake News.
A des/organização das esquerdas e a cassação judicial do PT
Enquanto a crise se agiganta, os setores ditos progressistas, os partidos de esquerda e movimentos sociais não se apresentam para a sociedade como oposição apta a enfrentar o bolsonarismo. A esquerda tem dificuldade para pautar a agenda e acaba sendo pautada pela situação, ou seja, as atrocidades e aberrações ditas pelo presidente, as articulações feitas pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), os pronunciamentos do Ministro da Economia (Paulo Guedes) e do Ministro da Saúde (Mandetta), as divergências entre governadores e o presidente, são as pautas da atual conjuntura, na qual a esquerda atua como uma espécie de figurante, pois nem coadjuvante podemos considera-la.
A esquerda replica e discute a pauta da situação. Não temos a apresentação para a sociedade de um projeto de nação que seja antagônico ao bolsonarismo. Negar esse modelo, sem apresentar um outro, não fortalece o campo opositor. Estamos numa triste situação, em que as divergências entre o direitista João Dória (PSDB), governador do Estado de São Paulo e o presidente “Bolsonero”, animam a militância e a colocam numa posição favorável aos pronunciamentos do governador de São Paulo. Estamos vendo a ultradireita confrontando com a direita, mas, onde está a esquerda?
Publicações de direita, a exemplo da revista Exame, [10]afirmam que a “nova oposição” seria uma junção da “direita democrática” com a esquerda contra Bolsonaro. A esquerda, nessa perspectiva, estaria contando com a ajuda de parte da direita que se rebelou contra o governo e agora busca a sua queda. O problema é que esse tipo de aliança custa muito caro, pois a constituição desse “blocão” de oposição compromete as lutas socais e as reivindicações da classe trabalhadora, a exemplo da revisão crítica da reforma trabalhista, que beneficiou a classe dominante e teve apoio dessa direita que agora se coloca na oposição a Bolsonaro. Essa mesma direita foi decisiva no golpe de Estado que afastou a Presidenta Dilma Rousseff do poder. Como confiar nesses aliados de conveniência? A esquerda precisa se fazer oposição de verdade.[11]
Outra questão que tem ocupado a conjuntura é a provável cassação judicial do registro do Partido dos Trabalhadores. Em nota no dia 06 de abril, o partido informa não possuir maiores dúvidas de que essa ação será julgada improcedente e a plena legalidade de suas ações, novamente afirmada. Esse seria mais um fator para retirar as atenções do tema mais importante, que é a dupla crise do COVID-19 e do governo Bolsonaro. Mas é importante ficar atento a esse assunto, pois o Judiciário político brasileiro tem se manifestado nos últimos anos de forma anacrônica e duvidosa. Quem tem Sérgio Moro como Ministro da Justiça, hoje inexpressivo na estrutura de poder, não pode esperar muito coisa.
A imagem externa de Bolsonaro e mais uma crise com a China
Enquanto 59% da população brasileira não concorda com a renúncia do presidente Bolsonaro, externamente a sua imagem é bastante negativa, pois o mundo se assusta com as suas declarações, principalmente sobre a pandemia do novo coronavírus. As notícias de jornais nacionais e internacionais demonstram o tamanho do estrago ao país que este governo vem promovendo. Vejam algumas matérias: “Bolsonaro destrói a imagem internacional do Brasil, segundo Jamil Chade”[12]; “Ao negar isolamento, Bolsonaro mancha ainda mais imagem do país no exterior”[13]; “Maior consultoria de risco político do mundo sentencia: ‘Bolsonaro virou chacota internacional’”[14]; “’Incendiário’, ‘inacreditável’ e ‘contraditório’: imprensa europeia analisa pronunciamento de Bolsonaro sobre coronavírus”[15]; “Bolsonaro is endangering Brazil. He must be impeached” (“Bolsonaro está colocando em risco o Brasil. Ele deve ser impedido”).[16]
A imagem internacional do presidente piora a cada pronunciamento. Como se não bastassem as asneiras ditas pelo chefe de Estado, o seu filho Eduardo Bolsonaro (deputado Federal PSL-SP)[17] e o Ministro da Educação, Abraham Weintraub[18], agridem a China, afirmando que a pandemia de coronavírus não passa de uma conspiração chinesa para dominar o mundo; e tudo com o apoio do Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que também é partidário dessa tese. As declarações estremeceram as relações entre esses dois países e prejudicam os negócios e o crescimento econômico do Brasil.
“É preciso estar atento e forte! ”[19]
Temos um governo que se caracteriza pelo ódio, pelo caos, por agressões gratuitas à imprensa, à Ordem dos Advogados, à ciência, às universidades, ao Congresso Nacional, aos movimentos sociais, ao Judiciário, às instituições que têm como missão o fortalecimento da democracia e da cidadania no país. É um governo que esconde sua incompetência na tática do ataque como defesa. O Brasil, antes da COVID-19, não crescia, elevava o desemprego, ampliava o quadro de desigualdade social e comprovava que o governo Bolsonaro nunca teve um programa para enfrentar os problemas econômicos e sociais do país; a sua agenda ultraneoliberal, configurada no discurso privatista do Ministro Paulo Guedes, limitava-se a impor a tese das “reformas” para promover desenvolvimento.
A chegada da crise com o novo coronavírus evidenciou para toda a sociedade e para o mundo que este governo é um desastre e não tem nenhum compromisso com os mais pobres, sobretudo quando, em seus vários pronunciamentos, defende o fim do isolamento social e a volta ao trabalho para favorecer os lucros da classe dominante que precisa dos trabalhadores para manter seus negócios. A classe trabalhadora precisa perceber sua importância estratégica no capitalismo e se fortalecer cada vez mais após a passagem dessa pandemia. O mundo será diferente depois da COVID-19. Por ora, temos que fortalecer os laços de solidariedade e conscientizar os mais pobres da necessidade de se manter em suas casas para preservar vidas.
Não queremos perder ninguém para esse vírus. É fundamental manter-se alerta para questionar as decisões equivocadas deste governo, que tenta empurrar o povo para a morte.
Queremos viver, queremos sonhar com uma sociedade mais humana e fraterna, que vença o ódio, cuja principal representação é o atual presidente.
Fora governo do ódio e terror! A vida vencerá!
[1]. Doutorando em Educação e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação (PpgeDuc) da Universidade do Estado da Bahia; Professor da FACIBA (Faculdade de Ciências da Bahia); Professor da Unime Salvador.
[2]. Veja em: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2020/04/pec-orcamento-guerra-estado-assumir-prejuizo-bancos/
[3] Veja em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gabinete-do-odio-vira-o-conselho-da-republica-de-bolsonaro,70003247802
[4]. Veja em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/30/imprensa-internacional-repercute-postura-de-bolsonaro-diante-da-pandemia-de-coronavirus.ghtml
[5]. Veja em: https://www.cartacapital.com.br/Politica/popularidade-de-bolsonaro-cai-e-do-congresso-aumenta-revela-pesquisa/
[6]. Veja em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/59-sao-contra-renuncia-de-bolsonaro-aponta-pesquisa-nacional-do-datafolha.shtml
[7] Veja em: https://revistaforum.com.br/politica/braga-netto-o-presidente-de-fato-liga-para-bolsonaro-em-live-e-secretario-dispara-ta-com-inveja/
[8] . FONSECA, Ribamar. Bolsonaro virou Rainha da Inglaterra: reina mas não manda. Jornal Online Brasil 247, São Paulo, 2020. Disponível em https://www.brasil247.com/blog/bolsonaro-virou-rainha-da-inglaterra-reina-mas-nao-manda, acesso em: 07∕04∕2020.
[9] . SADER, Emir. Los militares llegaron de la mano de Bolsonaro. Jornal Página 12, Buenos Aíres, Argentina, 2020. Disponível em https://www.pagina12.com.ar/257694-los-militares-llegaron-de-la-mano-de-bolsonaro, acesso 08∕04∕2020.
[10] . Veja em https://epoca.globo.com/guilherme-amado/a-nova-oposicao-direita-democratica-se-une-esquerda-contra-bolsonaro-24347158
[11] . Veja em: Os (des-) caminhos da esquerda em 2019 e a avenida aberta para Bolsonaro. Disponível em: https://duploexpresso.com/?p=102135 , acesso 08∕04/2020
[12]. Veja em https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2020/02/bolsonaro-imagem-internacional-do-brasil-jamil-chade/
[13] . Veja em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/04/06/interna_politica,842622/ao-negar-isolamento-bolsonaro-mancha-ainda-mais-imagem-do-pais-no-ext.shtml
[14]. Veja em https://www.conversaafiada.com.br/economia/maior-consultoria-de-risco-politico-do-mundo-sentencia-bolsonaro-virou-chacota-internacional
[15]. Veja em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/03/25/incendiario-inacreditavel-e-contraditorio-imprensa-europeia-analisa-pronunciamento-de-bolsonaro-sobre-coronavirus.htm?cmpid=copiaecola
[16]. Veja em https://www.washingtonpost.com/opinions/2020/03/29/bolsonaro-is-endangering-brazil-he-must-be-impeached/
[17]. Veja em https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-19/esforco-de-eduardo-bolsonaro-para-demonizar-china-copia-trump-e-ameaca-elo-estrategico-do-brasil.html
[18]. Veja em https://www.brasil247.com/regionais/brasilia/weintraub-agride-a-china-e-coloca-em-risco-a-economia-nacional-e-as-vidas-de-brasileiros
[19] . Divino Maravilhoso. Caetano Veloso, IN: Gal Costa. São Paulo: Philips, 1969.

Si desea recibir más información sobre las propuestas de formación de CLACSO:
[widget id=”custom_html-57″]
a nuestras listas de correo electrónico.