Reflexos do racismo estrutural no Brasil
Os povos e as comunidades tradicionais na pandemia Covid-19
Diana Anunciação Santos*
Carlos Alberto Santos de Paulo**
Leny Alves Bomfim Trad***
No Decreto Federal nº 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, estes são descritos (art. 3º, inciso I) como grupos que “possuem formas próprias de organização social e que “ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica” através de “conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
Dentre as várias categorias compreendidas no rol dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil, destacam-se neste texto as repercussões da Pandemia do Covid-19 para os Quilombolas ou comunidades remanescentes de quilombos, termo utilizado no Brasil desde o final dos anos 80 para se referir a territórios que já sediaram os povos africanos e seus descendentes a partir da abolição da escravatura ou que resistiram ao processo de escravização. Embora estas comunidades tenham sido reconhecidas como portadoras de direitos específicos a serem assegurados pelo Estado a partir da Constituição Federal de 1988, elas seguem em um contexto de cidadania incompleta (LEITE, 1999), demarcado pelo racismo estrutural (ALMEIDA, 2018).
Neste sentido, a pandemia do novo coronavírus contribuiu para agravar um quadro de vulnerabilidade social e sanitária que acompanha essas comunidades, situadas majoritariamente no meio rural, ao longo de sua existência. O advento do Sars-Cov-2 expõe de forma inquestionável as mazelas sociais decorrentes do processo escravista. É preciso destacar que mesmo após 132 anos do fim oficial da abolição, a realidade deste segmento permanece inalterada, seja pelas condições socioambientais e política, seja pelo racismo estrutural, o qual mantem os grupos racialmente identificados em condição sistemática de discriminação (Idem).
O governo atual, inclusive, tem implementado uma política de ataque às comunidades e povos tradicionais, sobretudo aos remanescentes de quilombos e povos indígenas, com paralisações das demarcações de terra, bem como negação das políticas públicas e criminalização das populações que compõem estes grupos. Destaca-se também as estratégias utilizadas para isolamento dessas comunidades, a fim de coibir a proliferação do vírus, condição que acarreta em confinamento das pessoas sem as condições mínimas de enfrentamento sanitário e de manutenção de sua (sub) existência, bem como as subnotificações dos casos confirmados de contaminação e morte deste segmento populacional.
O contexto traduz a necessidade de atenção às idiossincrasias destas comunidades, no que tange às condições de saúde, as situações de adoecimento e itinerários terapêuticos, os quais para as interações com os sistemas formais e informais de cuidado. É preciso reconhecer que o complexo saúde-doença-cuidado envolve, para além dos determinantes biológicos, os determinantes sociais (que englobam condições econômicas, sociais, culturais e ambientais em que vivem essas populações), os quais têm se revelado decisivos nas situações de adoecimento pelo Covid-19 e, principalmente, na diferenças entre vencer a doença ou morrer.
Os povos e comunidades tradicionais no Brasil vivenciam condições de pobreza que não lhes permitem o acesso às mínimas condições e aos bens essenciais para garantia de sua saúde e bem estar. No entanto, é preciso compreender que a pobreza não é somente a falta de acesso aos bens materiais, mas a situação de vulnerabilidade decorrente da ausência de oportunidades e de possibilidades de escolha entre diferentes alternativas. Esta se manifesta na falta de emprego e renda, de moradia digna, de alimentação adequada, de educação e de mecanismos de participação popular na construção das políticas públicas. Revela-se também na ausência de resolução de conflitos, o que agrava mais ainda a violência no meio rural, assim como na precariedade de relações ambientais sustentáveis. Todos estes elementos estão intrinsecamente associados às diferentes maneiras de adoecer e morrer.
Evidenciam-se também limitações de acesso e qualidade nos serviços de saúde, bem como uma deficiência na área de saneamento básico. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2018), ainda são graves as desigualdades na promoção dos serviços de abastecimento de água entre os habitantes das áreas urbanas e rurais, chegando a 67,2% da população rural ainda captando água de chafarizes e poços (protegidos ou não) diretamente de cursos de água sem nenhum tratamento ou de outras fontes alternativas, geralmente insalubres. Esse cenário contribui para o surgimento de doenças de veiculação hídrica, de parasitoses intestinais e de diarreias, bem como da impossibilidade de higienização adequada, conforme preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), neste contexto de pandemia do Sars-Cov-2.
No caso específico das comunidades remanescentes de quilombo, soma-se também altos índices de doenças crônicas como anemia falciforme, diabetes miellitus, hipertensão arterial e outras comorbidades, tornando-as ainda mais vulneráveis aos impactos provocados pela Covid-19. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), no Brasil há seis mil comunidades, estimando-se a presença de 16 milhões de pessoas, deste total 30% são de idosos. Até o dia 22 de junho de 2020, o Brasil já tinha registrado 826 diagnósticos confirmados e 86 óbitos pela Covid-19 apenas entre os remanescentes de quilombo, tendo também 02 óbitos com suspeita, porém sem confirmação de diagnóstico e 192 casos em monitoramento. Os estados de Alagoas, Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Rondônia e São Paulo possuem registros de contaminados, enquanto que os estados Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro já contabilizam, além dos contaminados, óbitos.
Cabe salientar que a perda de um idoso para estes grupos implica um impacto coletivo de grande relevância, pois junto com os mais velhos perde-se todo o conhecimento e saberes tradicionais que envolvem as práticas religiosas e culturais e o saber-fazer do trabalho na terra (roçado), nas florestas (extrativismos) e nas águas (mariscagem e pesca artesanal). E, mais ainda, perde-se a memória coletiva do tempo passado de organização social do próprio grupo (BOSI, 2009).
Em suma, o agravamento da crise política no país, os processos sociohistóricos decorrentes de uma abolição não concluída e o advento da pandemia do novo coronavírus ameaçam a sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais no Brasil. Destarte, para alcançar esses grupos de modo adequado é preciso a implementação de ações intersetoriais e discussões interdisciplinares consideradas imprescindíveis para que o impacto sobre o nível de vida e de saúde das populações do campo, das florestas e das águas seja mínimo.
*Diana Anunciação Santos é Socióloga, Doutora em Ciências Sociais e Professora Adjunta do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É membro titular do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra do Estado da Bahia. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR), bem como do Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Comunidade, Família e Saúde: Sujeitos, Contextos e Políticas Públicas (FASA) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), ambos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integrante do Grupo de Trabalho CLACSO Saúde Internacional y soberanía sanitaria.
** Carlos Alberto Santos de Paulo é Pedagogo, Doutor em Política Social e Professor Adjunto do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Atualmente, Pró-Reitor da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis (PROPAAE) da UFRB. É membro pesquisador do Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Comunidade, Família e Saúde: Sujeitos, Contextos e Políticas Públicas (FASA) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), e do Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR), ambos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integrante do Grupo de Trabalho CLACSO Saúde Internacional y soberanía sanitaria.
*** Leny Alves Bomfim Trad é Psicóloga, Doutorado em Ciencias Sociales y Salud (Universidad de Barcelona, 1996). Professora Titular do Instituto de Saúde Coletiva – Universidade Federal da Bahia onde coordena o Programa Integrado de pesquisa e Cooperação Técnica Comunidade, Família e Saúde – Sujeitos, Contextos e Políticas Públicas (FASA). Bolsista PQ1d/ do CNPq. Integrante do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO. Integrante do Grupo de Trabalho CLACSO Saúde Internacional y soberanía sanitaria.
Referências
ALMEIDA, S. L. de.O que é racismo estrutural?Belo Horizonte: Letramento, 2018. (Coleção Feminismos Plurais).
BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
BRASIL. Decreto Federal nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais — PNPCT. Brasília, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 26 mai. 2020.
CONAQ. Conaq e ISA lançam o ‘Observatório da Covid-19 nos Quilombos’. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/observatorio-da-covid-19-nos-quilombos/. Acesso em: 27 mai. 2020.
IBGE. PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. 2018. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 26 maio 2020.
LEITE, I. B. Quilombos e quilombolas: cidadania ou folclorização? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n. 10, 1999, p. 123-149.
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