Covid-19 e Relações Patriarcais de Gênero no Brasil: mulheres em risco
Laiany Rose Souza Santos[1], Joana das Flores Duarte[2] y Carla Apenburg Trindade[3]
Em contexto de pandemia da COVID-19, a aflição pela vida sentida pelas mulheres revela que, além do vírus, convivem com as múltiplas expressões de violência radicadas na desigualdade de sexo/gênero. Situação essa que coloca em risco a vida de milhares de mulheres (meninos e meninas também) todos os dias. Para se ter uma ideia da realidade brasileira, só no ano de 2019, a cada sete horas uma mulher foi vítima de feminicídio, totalizando no ano 1.314 mulheres, um aumento de 12% comparado com o ano de 2018, conforme aponta o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (2019). Ainda segundo o documento, o aumento de morte de mulheres motivo por crime de ódio pela condição de gênero, está em sentido contrário se comparado ao número de assassinatos no Brasil em 2019, cuja queda foi de 19% comparado ao ano anterior (2018).
Feminicídio é tipificado como crime de natureza hedionda, e sua substância motivadora é a de ódio ao sexo/gênero feminino. Se pensarmos em quais são os fundamentos dessa ação penal, veremos que se assenta nas relações desiguais entre sexo/gênero. E, portanto, a sua materialidade diz respeito ao conjunto de valores sociais, morais, econômicos, culturais, raciais e geracionais que atribuem a sociabilidade capitalista o lugar de menor valor, às mulheres, visto que o parâmetro de comparação é o de soberania e supremacia do sexo/gênero masculino, consolidando dessa forma relações patriarcais – ou seja, um sistema social em que os homens exercem e mantêm poder e soberania em todas as esferas da vida social.
Feminicídio por definição é a discriminação da mulher por sua condição de sexo/gênero. Desse modo mulheres vítimas desse crime são mortas por seus ex’s ou atuais companheiros, que dentre a tentativa de buscar justificar tal ato, alegam não aceitarem o fim da relação ou estarem motivados por ciúmes da companheira. Esse crime está intrinsecamente relacionado à violência em âmbito privado, ou seja, dentro de suas casas. Assim, o ambiente doméstico para essas mulheres denota risco de vida, é o que aponta o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (2019). Só no ano de 2018 foram 263 mil casos registrados de lesões corporais dolosas em decorrência de violência doméstica e 66 mil estupros (esse último sem distinguir o local).
Para Heleieth Saffioti (2004, p. 136), as relações de gênero estão imbricadas em relações de poder, porque o gênero na sociedade patriarcal tende a ser opressor, visto que está associado ao sistema sexo/gênero. Todavia, a autora salienta que o conceito em si não é impeditivo para relações equitativas, mas sim o modo como tais relações são (re)produzidas. Ainda, segundo a autora, o conceito de gênero é mais amplo que o patriarcado, por ser este último um fenômeno histórico mais recente, no qual se “implantou uma hierarquia entre homens e mulheres, com primazia masculina”, enquanto que o primeiro acompanhou a humanidade desde a sua existência.
Partindo da leitura de que gênero não é um conceito neutro, mas correspondente à ideologia patriarcal e ao poder que ela exercer, é preciso recorrer à história e nela encontrar as rupturas e as continuidades dos direitos reservados às mulheres e aos grupos minoritários. Sobre a trajetória das mulheres, em especial das trabalhadoras, Silvia Federici (2010) afirma que a transição do sistema feudal para o sistema capitalista não foi somente uma resposta às crises do sistema vigente à época, mas, substancialmente, o propago de uma sociedade fundada no princípio da igualdade.
Uma igualdade substanciada no direito à propriedade, à liberdade e ao poder de escolha, tudo muito articulado ao próprio desenvolvimento do sistema, que se constituiu por meio da divisão social e sexual do trabalho, da separação dos meios de produção e reprodução dos bens socialmente produzidos. Isso implica diretamente no processo de monetarização da força de trabalho feminina que, segundo Federici (2010), segue o ordenamento feudal de submissão.
Esclarecendo este ponto, Saffioti (2013, p. 230) afirma que a posição social da mulher, subvalorizada e restrita ao espaço privado, ainda presente nos discursos contemporâneos, guarda relação direta com o sistema escravocrata senhorial. As relações desiguais entre homens e mulheres e, consequentemente, a posição da mulher na sociedade em geral, “constituem parte de um sistema de dominação mais amplo”. A forma como se organizava e distribuía o poder na sociedade escravocrata brasileira foi determinante para a formação de uma estrutura social marcada por “mitos e preconceitos, através dos quais a sociedade ainda hoje busca justificar a exclusão da mulher de determinadas tarefas e mantê-la, desta forma, no exercício quase que exclusivo de seus papéis tradicionais e das ocupações reconhecidamente femininas”.
No caso da pandemia, o COVID-19 evidencia os limites do capital e da teoria neoliberal do Estado Mínimo, e ao mesmo publicita marcas das desigualdades entre sexos/gêneros, que antecedem sua origem, mas que comprova o quanto o “lugar da mulher” na sociedade constitui-se entre velho e novo, ou seja, ao mesmo tempo em que elas incorporam grande quantitativo da frente responsável pelo combate à pandemia, no que diz respeito aos cuidados relativos à saúde, uma parcela considerável dessa população em confinamento forçado, corre o risco de morte. Trata-se do paradoxo de um mundo em que embora sejam reconhecidamente úteis ao capital e sua reprodução, são também passíveis de execução por sua condição de gênero.
Opondo-se ao que a maioria dos chefes de Estado no mundo vem adotando, e do que propõe a Organização Mundial de Saúde no combate e prevenção do Coronavírus, o presidente da República do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, nacionalmente e internacionalmente conhecido por suas posições de defesa e saudação à ditadura civil, militar e empresarial ocorrida no Brasil por mais de três décadas (1964-1985), de redução do Estado Social, de privatização das empresas públicas e de ser um antifeminista, alegou que o coronavírus era apenas uma “gripezinha”, e que a economia não poderia parar por conta da mesma. Diante da falta de argumento discursivo para legitimar tamanha irracionalidade, Bolsonaro fez uso político-partidário da violência de gênero, cujo propósito foi o de tomar como referência um dado real – o de que mulheres são vítimas de violência em âmbito privado – para reforçar o discurso de reingresso da classe trabalhadora ao mercado de trabalho, em pleno pico epidêmico. “Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?”
Jair Bolsonaro buscou correlacionar o isolamento social como um agravante para ocorrências de violências contra mulheres no âmbito privado, todavia, é sabido que o próprio presidente obstaculiza em termos de ações afirmativas e pautas de ação do governo, políticas sociais de combate e enfretamento às desigualdades de sexo/gênero. Inclusive, ações dos Governos anteriores de combate à violência contra a mulher foram extintas pelo atual governo. A pauta que então vinha com uma perspectiva de luta e combate às violações de direitos humanos, com base em documentos históricos como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mundialmente conhecida como “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ (1994)” foi substituída na atual gestão por um ministério com princípios pentecostais, sob o comando da Ministra e Pastora Damares Alves.
Dito isso, importa esclarecer, que a violência contra a mulher em espaços públicos e privados é uma realidade ainda pouco enfrentada e combatida pelo poder público. O confinamento forçado tem instigado diversas frentes feministas na denúncia da falta de equipamento público de atendimento e serviços para esse fim. O risco de possíveis casos de violência e morte em âmbito privado de mulheres nos coloca em situação de alerta sobre as medidas de prevenção ao vírus.
Na medida em que as autoridades orientam a quarentena, ignoram que para muitas de nós essa medida é também de risco. Nesse caso, é preciso junto ao combate do vírus traçar e fortalecer políticas públicas de mapeamento e monitoramento de situações de risco, tais como registros de denúncia por violência doméstica, monitoramento das medidas de proteção previstas na Lei 11.340/06 – Maria da Penha -, articulação com as políticas de Assistência Social e Saúde no território, tanto na prestação de serviços relacionados aos benefícios emergenciais e programas de transferência de renda, quando ao atendimento à saúde da mulher em caso de suspeita de Covid-19, visto que para muitas o acesso à rede de atendimento é tardia, por serem responsáveis pelos cuidados da família. É preciso, portanto, coadunar a luta de erradicação do vírus e das múltiplas formas de violência de sexo/gênero.
[1] Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe, Professora do Departamento de Geografia de Itabaiana/UFS, Pesquisadora no Laboratório de Estudos Rurais e Urbanos (LABERUR/UFS), no Laboratório de Estudos Territoriais (LATER/UFS) e no Grupo de Trabalho CLACSO Feminismos, Resistências e Emancipação.
[2] Feminista Professora Doutora em Serviço Social. Integrante do Grupo de Trabalho CLACSO Feminismos, Resistências, e Emancipação. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Violência (NEPEVI). Tem artigos sobre os temas: Justiça, Gênero, Seletividade Penal e Criminalização dos Pobres. Tem publicado os livros: Para Além dos Muros: as experiências sociais das adolescentes na prisão (REVAN, 2017) e Meninas e Território: criminalização da Pobreza e Seletividade Jurídica (Cortez, 2018). Em organização tem o livro: Expressões de Violência: experiências de intervenção e pesquisa em Serviço Social (Appris, 2017).
[3] Feminista, Graduanda em Licenciatura Geografia na Universidade Federal de Sergipe, pesquisadora no Laboratório de Estudos Rurais e Urbanos (LABERUR/UFS). Grupo de Trabalho CLACSO Feminismos, Resistências, e Emancipação.
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